Texto adaptado de Luis Flávio Gomes
Para Francisco falou que estamos vivendo uma guerra mundial “aos pedaços”. Luis Flávio Gomes mostra que, na verdade, a história revela que nós, humanos, vivemos em guerra. Significa que somos beligerantes por natureza. "A guerra reciprocamente declarada
entre o Estado Islâmico e a França (incluindo os EUA e vários outros
países) não é algo excepcional na existência humana. Os seres humanos
matam uns aos outros desde que desceram das árvores. Não seria surpresa
(diz Matthew White[2]) “encontrar corpos ocultos no alto das suas
folhagens”. A arqueologia está cheia de ossos humanos com fraturas
provocadas por armas. Milhões e milhões e milhões de seres humanos já
foram trucidados por outros seres humanos (Steven Pinker)", diz o jurista.
"Guerreamos
pelas nossas vidas, pelas nossas coisas, pela nossa cidade ou país,
pelas nossas preferências políticas, pelas nossas ideias, pela nossa
família ou por amigos, por espaços no trânsito, por territórios lícitos
ou ilícitos, pelo nosso time... E, por que não?, também por religiões.
Não existe o sujeito “neutro” (Foucault[3]): somos, então,
necessariamente, adversários de alguém (de alguma ideia, de algum
“inimigo” pessoal ou coletivo, de alguma crença, de alguma ideologia)", continua o mesmo autor.
Para ele, a teoria filosófico-jurídica que, sob o amparo da “teoria da soberania”
(desenvolvida no final da Idade Média), difunde a ideia de que é a partir do poder soberano que a
sociedade é estruturada de forma pacífica (de cima para baixo, de
maneira hierarquizada), serve apenas para "esconder a verdadeira
realidade das “relações de poder e de dominação”, as quais, enfocadas de
baixo para cima (Foucault), são fundadas em guerras, desavenças,
conflitos, rebeldias, insurreições, discussões, litígios e dissidências.
Todo o direito é fruto de muita guerra, de muito conflito".
Ele argumenta que, no
mundo jurídico, difunde-se outra "ideia equivocada (sintetizada por
Cícero) de que “inter arma silent leges” (sob guerras, as leis
silenciam)". Na verdade, afirma o professor, "não haveria nem sequer o poder político enquanto existem
guerras. Em outras palavras, cessadas as guerras, nasceria o poder
político. Ilusão, pois foi a guerra quem presidiu "o
nascimento dos Estados, do direito, da paz e das leis. Todas essas
instituições nasceram do sangue e do lodo das batalhas e das
rivalidades, que nunca foram (como imaginavam os filósofos e juristas)
batalhas e rivalidades ideais (sim, reais). A lei não nasce da natureza,
como se fosse uma fonte a que acessavam os primeiros pastores. A lei
nasce de conflitos reais: massacres, conquistas, vitórias que têm suas
datas e seus horrorosos heróis; a lei nasce das cidades incendiadas, das
terras devastadas; a lei nasce dos inocentes que agonizam ao amanhecer”
[ou ao anoitecer].[4]
"Nem antes nem depois da Primeira
(1914-1918) ou da Segunda Guerra mundial (1939-1945) o humano nunca
deixou de estar envolvido em conflitos mortíferos. Guerra laica, guerra
santa, guerra ostensiva, guerra insidiosa, guerra infinita, guerra
preventiva... Adoramos a guerra (as potenciais vítimas, sobretudo as
civis, evidentemente, não pensam assim) como a mitologia adorava os
deuses. Não guerreamos “aos pedaços”, sim, permanentemente. Em todas as
relações de poder (ou melhor: de dominação, como diria Foucault) está
presente a guerra (o litígio, o conflito, a desavença).
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