Tribunal do Júri no Brasil não faz Justiça

domingo, 24 de abril de 2011

Da forma como o Tribunal do Júri funciona no Brasil, não se faz Justiça nem quando o réu é condenado nem quando ele é absolvido pelos jurados. A opinião é do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Paulo Sérgio Rangel do Nascimento, ex-promotor de Justiça que passou 18 anos de sua carreira atuando em casos apreciados e julgados por pessoas que não se dedicaram ao estudo do Direito.

Rangel defende as mudanças propostas para o Processo Penal em trâmite no Congresso, sobretudo no que se refere ao Júri. Uma delas é a fundamentação pelos jurados da decisão que condena ou absolve. “Se a Constituição diz que toda e qualquer decisão judicial deve ser fundamentada, é obvio que inclui a dos jurados”, disse em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, pois, absolvido ou condenado, o réu nunca sabe das razões daquele desfecho.

Pela experiência que adquiriu durante o tempo que trabalhou no Júri, Rangel observa que as decisões dos jurados são motivadas pelas mais variadas — e despropositadas — razões. “Já ouvi a justificativa de que o réu foi absolvido porque ‘coitado; ele é tão bonitinho. O perigo dessa decisão é que se trabalhou com direito penal do autor. Um autor feio como eu, se sentar no banco dos réus, será condenado. O que se está levando em consideração é a aparência física do réu”, afirma. Se a justificativa para a absolvição fosse conhecida, conclui, esse resultado seria anulado. “Como não é dito, a defesa ou acusação não sabe e, portanto, não pode impugnar. Em plena democracia, há uma decisão às escuras, oculta.”

Ao se posicionar a favor de mudanças no CPP, Rangel diz que é preciso adequar o Código à Constituição. Ele critica o fato de, no Brasil, não se fazer uma reforma cuja pergunta seja: ela é boa para a sociedade? Cada corporação perde um pouco, mas quem ganha é a coletividade. “Todos vão precisar de um código garantista e adequado à Constituição, basta se sentar no banco dos réus para perceber isso. E, no Brasil, para sentar no banco dos réus basta estar vivo e ter mais de 18 anos.”

Paulo Rangel nasceu no Rio de Janeiro e se formou pela Universidade Cândido Mendes, em 1990. Pela mesma universidade se tornou mestre, em 2003. Dois anos depois, terminou o doutorado na Universidade Federal do Paraná. 

Veja algumas declaraçoes do desembargador à Conjur 
  • a Constituição da República diz, claramente, no artigo 93, inciso IX, que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e todas as decisões fundamentadas, sob pena de nulidade. 
  • O argumento — que não se sustenta — é de que, no Júri, não há como ter fundamentação, porque o voto é secreto. A fundamentação não passa por saber em quem o jurado votou, e sim o motivo que o levou a condenar ou absolver. O voto continua sendo secreto.
  • Deve ser feito da mesma maneira que é feita hoje: “Eu condeno porque a testemunha foi firme; porque o laudo de confronto balístico foi indiscutível; porque a arma que matou é a que estava na mão do réu”. Sempre há uma razão, ainda que seja a de que está condenando porque o acusado tem uma folha penal extensa. Antes da reforma da lei, em 2008, quando o juiz retirava todos os votos, era possível saber quem decidiu condenando ou absolvendo, quando havia unanimidade. O argumento de preservar o voto secreto já não se sustentava.
  • não se adota a obrigatoriedade de fundamentação porque nós temos dificuldade de cumprir a Constituição. Há muita resistência de adequar o Código de Processo Penal ao modelo constitucional de processo. É esse o motivo pelo qual a brilhante comissão presidida pelo ministro Hamilton Carvalhido [do Superior Tribunal de Justiça], que fez o anteprojeto de reforma do Código, está sofrendo ataque por parte de alguns segmentos do meio jurídico. O Código, embora não seja perfeito, é bem avançado e moderno para o processo penal brasileiro.
  • O réu é condenado pelo Júri e fica sem saber o porquê,  haja vista que os jurados não dizem. E a sociedade também fica sem saber por que o réu foi absolvido. O que resta são suposições. Já ouvi jurados dizerem que é claro que o réu, com uma folha penal como aquela do caso que julgaram, era o autor do crime. Perceba o perigo dessa decisão. Ele não levou em consideração as provas do processo, mas sim a vida passada do réu.
  •  no processo penal, os antecedentes não podem ser considerados para condenação do acusado naquele processo específico. Mas no Júri, se os jurados assim decidirem, sequer é possível saber. Também já ouvi a justificativa de que o réu foi absolvido porque “coitado; ele é tão bonitinho”. O perigo dessa decisão é que se trabalhou com direito penal do autor. Se alguém feio sentar no banco dos réus, será condenado. Se o jurado justificasse a decisão e apresentasse esse motivo, o Júri seria anulado. Como não é dito, a defesa ou acusação não sabe e, portanto, não pode impugnar. Em plena democracia, há uma decisão às escuras, oculta.
  • uma grande discussao é sobre a necessidade de que determinados crimes sejam julgados por leigos, que não têm o conhecimento do que é ou não válido no processo penal. Os jurados estão aptos, prontos, sabem julgar? São sorteados para integrar o Júri uma professora primária, um porteiro, um médico, um matemático, um advogado, enfim, pessoas dos mais diversos matizes da sociedade. Dizem os defensores do Júri que este decide com base no sentimento popular. Os contrários observam que esse sentimento pode ser negativo, de raiva e de ódio, ou de amor, de benevolência e de tolerância, o que nada tem a ver, nem um e nem outro, com o sentimento de Justiça. É claro que como ser humano nós sempre vamos ou deveríamos dizer que perdoamos. Mas para a lei dos homens, se o réu cometeu um crime, deve pagar na medida de sua culpa.
  • Colocar pessoas que não estudaram Direito é um risco. Eu dediquei e ainda dedico a minha vida para estudar, preparando-me para julgar. Às vezes, me deparo com situações que tenho que refletir muito para chegar a uma conclusão. Imagina ser sorteado para integrar um Júri: “Hoje é dia de julgar. Vá lá e julgue”. A pessoa não sabe bem o que está acontecendo, não sabe bem como funciona, não entende porque foi chamada, simplesmente, o juiz diz que ela é obrigada a participar e que não pode se recusar, do contrário, vai pagar multa ou ser presa. Ao se deparar com o caso, surgirão lembranças de quando a pessoa foi assaltada no ônibus; do irmão, que já foi acusado injustamente; de já ter levado um tapa de um guarda; do pai que foi assassinado; do bairro violento onde mora. Há sentimentos que afloram no Júri e que servem para duas coisas: para condenar e absolver. São sentimentos que influenciam na hora de decidir, ainda mais em um Júri que não justifica a sua decisão. Isso é perigoso.
Os casos julgados pelo Júri são os chamados crimes dolosos contra a vida. São crimes que, em tese, qualquer um de nós pode cometer. Qualquer um de nós tem capacidade de compreender porque foi cometido. Ninguém vai convencer o outro a roubar um banco, a estuprar, a falsificar moeda. Isso são crimes em que a pessoa já está com a personalidade formada. Também não vai convencer a matar. Mas um dia ela pode ter de matar para se defender. A grande discussão sobre a manutenção do Júri passa por essas análises acerca da necessidade ou não de deixarmos o colegiado, que não é preparado para isso, decidir a vida do outro.

  • Como moradores de Campo Grande [bairro da cidade do Rio de Janeiro], em um Júri local, vão julgar um homicídio praticado por milicianos que atuam na região? Ele não vão conseguir, porque os jurados serão ameaçados e mortos. A solução que o Tribunal do Rio encontrou foi acabar com o Júri de Campo Grande e transferi-lo para a capital, para que os jurados que vão julgar o homicídio praticado pela milícia de Campo Grande seja morador de outra região e evite a influência negativa dos milicianos sobre as pessoas que integram o Júri. 
  • Há o caso recente do casal Nardoni, de São Paulo, em que eles foram condenados. Mas se eles não fossem condenados, seria melhor fechar as portas. Aquele é um Júri em que o promotor já vai com um placar de 6 a 0, em uma partida que vai até 10.  Há pressão popular e prova técnica feita com muita acuidade. Mas, se retirarmos a repercussão e analisarmos outros casos que são julgados diariamente, vamos perceber que nem sempre o resultado é a condenação.
  • Por vários motivos. Primeiro, o despreparo das pessoas que vão para julgar. Segundo, o descompromisso social dessas pessoas. Elas foram obrigadas a se apresentar no Fórum. Eu não posso confundir a paixão que o promotor ou o advogado possa ter pelo Júri com a realidade do Júri. Uma coisa é gostar de colocar a roupa específica, de encenar, de fazer os discursos empolados. A outra é questionar se isso funciona como instrumento de Justiça. Se analisarmos os resultados que são obtidos, sejam eles condenatórios ou absolutórios, vamos observar que o Júri não funciona para um país como o nosso, de modernidade tardia, que ainda tem que avançar muito em determinadas políticas públicas. Com a reforma que está sendo proposta o Júri vai ter que discutir, na sala secreta, o porquê de estar condenando ou absolvendo.
  • A incomunicabilidade é a regra no Júri. Com a reforma do processo penal, uma vez aprovada, haverá comunicabilidade. Eu também acredito que o número de sete jurados é insuficiente. De 1822 até 1938 eram 12 jurados. Durante o governo ditatorial de Vargas, em 1938, foi baixado decreto diminuindo de 12 para sete. Isso tem uma razão de ser: política. Doze é um número par, é mais difícil de obter a condenação porque é preciso uma diferença de dois votos, 7 a 5 no caso. Em um número ímpar, é preciso apenas a diferença de um voto, 4 a 3. É mais fácil obter a condenação. No Júri ,de 1822 até 1938, os jurados se comunicavam entre si. Esse mesmo governo ditatorial acaba com a comunicabilidade e torna o Júri incomunicável com a justificava jurídica falaciosa de que é preciso manter a imparcialidade do Júri. O que tem de manter é a independência dos jurados, eles não podem ser coagidos. O Júri é o instrumento de democracia. Já vivemos duas ditaduras, e hoje estamos em uma democracia plena. Está na hora do Júri voltar a ser o que era. Não adianta viver em uma democracia se ainda há pessoas que têm um espírito ditatorial, punitivo.
  • A sociedade é punitiva. Se for feita uma enquete nacional sobre pena de morte, ela será aprovada. E quem vai para a cadeira elétrica são os pobres, os negros, as prostitutas. Não os do crime de colarinho branco. Por isso que, quando se fala de pena de morte, é preciso pensar na maioria da população que vai sentar naquela cadeira. Essa medida está fora de cogitação. E digo mais: a pena de morte está fora de cogitação também para os crimes de colarinho branco. Não interessa se o acusado roubou não sei quantos bilhões de reais dos cofres públicos. Pena de morte não, seja para o rico ou para o pobre. Isso é respeitar as diferenças em um país como o nosso.
  • Quando a imprensa está em cima, o promotor já tem a vantagem que é a comoção social. O que ele vai precisar fazer é levar as provas para o processo para justificar a decisão que já foi dada, socialmente, pela imprensa: a condenação. E há um problema nisso. Para a imprensa, não interessa o fato velho. Mas para o processo essa pressão é ruim, porque, de certa forma, coage o juiz e o promotor e limita o trabalho do defensor. Sem tolher a liberdade da imprensa, é preciso encontrar um meio termo para que haja a divulgação — e não há democracia sem a imprensa livre— sem gerar prejuízos ao réu. É difícil achar esse meio termo.
  • Às vezes, o resultado independe da vontade do promotor. Pode haver dificuldades em levar provas ao processo, em ouvir testemunhas, porque elas não vão depor, ou da perícia técnica que não está dotada de instrumentos necessários e adequados para elaboração do ato pericial. Uma das coisas que ainda mantém o Ministério Público de pé — e deve continuar assim — é a independência funcional e a inamovibilidade. É a certeza de que, custe o que custar, inclusive a própria vida, enquanto o promotor estiver agindo dentro da lei, ele não será removido nem coagido por ninguém a fazer algo que não seja o correto.
  • Certa feita, como promotor de Justiça em uma comarca, descobri que o prefeito atrelou o salário dele à arrecadação municipal. Ele ganhava 1% da arrecadação e mais dois terços de representação; o salário dele era de R$ 50 mil. Entrei com Ação Civil Pública e consegui a diminuição do salário dele. Arrumei um grande inimigo, houve uma pressão política tremenda. Ele dizia que ia me tirar de lá. Mas eu tinha inamovibilidade. Se eu pudesse ser removido, a sociedade ia perder. Mas, é claro que os membros do Ministério Público têm e devem ter responsabilidade para saber que não devem agir por impulso, por injunções políticas, nem imbuídos de qualquer outro espírito que não seja o de fazer justiça. Exatamente para impedir que haja uma ação ministerial em desacordo com aquilo que a sociedade busca na figura do Ministério Público.
  • Em matéria penal, os promotores ainda têm uma visão xiita do processo, mas nao existe nenhuma orientação de promover ações penais para buscar punições. Isso vem da própria história da instituição e da origem de seus membros. Teríamos que fazer um estudo sociológico de quais classes sociais vêm os membros do Ministério Público, que tipo de ensino e de preparo técnico possuem e, por fim, entender que a visão não é do MP, é da sociedade a qual o Ministério Público faz parte e representa. As pessoas têm prazer com o mórbido, com o sofrimento alheio. A sociedade é punitiva, é xiita, desde que não seja com ela. Se fizermos uma pesquisa e perguntar para as pessoas: “Vocês querem uma Polícia honesta, limpa e correta, um Ministério Público forte e independente, e um Judiciário implacável?”. As pessoas vão responder: “Sim. Desde que não seja para me processar”.
  • Um exemplo claro é o caso do filho da atriz Cissa Guimarães. O rapaz atropelou e matou o filho dela e fugiu. O pai dele, homem de classe média, foi corromper o policial. Se tivermos Polícia, Ministério Público e Judiciário implacáveis será o caos na sociedade, que não quer e nem está preparada para isso. A sociedade quer aquele guarda que aceita o dinheiro. A sociedade é hipócrita, porque quer um Ministério Público forte e implacável contra os outros, não contra ela. Tanto que quando o Ministério Público sobe o escalão, no sentido de perseguir e de punir crimes de colarinho branco, há um massacre para cima do órgão. Eu divido o MP antes e pós-Constituição. Este último ainda é muito novo e não aprendeu a trabalhar com todas as prerrogativas que tem. Com o tempo, seus membros vão estudando, refletindo, em busca de informações de outras disciplinas que nos ajudam a enxergar o Direito em uma dimensão maior. Mas isso exige a disposição de olhar além daquilo que até então se está olhando. Esse é um desafio não só do Ministério Público, mas de todas as classes jurídicas.
Entrevista na inegra na Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2011

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