Tricolores,

terça-feira, 28 de agosto de 2012


Centenário de Nelson Rodrigues, o Profeta Tricolor. 
Nelson Falcão Rodrigues nasceu em Recife (PE), em 23 de agosto de 1912. A crônica esportiva surgiu em sua vida profissional na segunda metade da década de 1950, já consagrado como dramaturgo e escritor, quando começou a redigir textos semanais para a revista Manchete Esportiva.
A partir de 1960, iniciou sua participação na Grande Resenha Esportiva Facit, um programa dominical da TV Rio. Em 1966, se mudou para a TV Globo e, no programa Noite de Gala, apresentava o quadro “A Cabra Vadia”, no qual entrevistava personalidades diversas, inclusive do universo do futebol. Nessa época, a TV Globo era a última colocada em audiência, o cenário do terreno baldio era tão precário quanto o próprio, a voz lenta e a dicção de Nelson não atendiam às necessidades da televisão. Pois a repercussão foi imensa: “nas esquinas e nos botecos”, citavam-se com familiaridade seus deliciosos personagens, bordões e frases de efeito. No final de 1967, ele voltou a escrever no jornal O Globo e passou a publicar as crônicas “À Sombra das Chuteiras Imortais”, que lhe ajudaram a consolidar a obra futebolística.

Musa rodrigueana
Autorizados pelo ilustre antecedente da entrevista imaginária - já conversamos aqui com nosso herói fundador, Oscar Cox -, surgiu o desejo de também entrevistarmos o Nelson, herói fundador da dimensão mítica do Fluminense. Tão logo a decisão foi tomada, intensificaram-se os preparativos, mas esbarramos em dificuldades inesperadas. O Adionson - além de se munir da rolley flex emprestada pelo Antonio Carlos -, nos alertou para a necessidade de “mantermos absoluta fidelidade à obra rodrigueana”, isto é, cismou que deveríamos providenciar uma cabra vadia para participar da entrevista. Mesmo em sua infinita paciência e santidade, o João Paulo aborreceu-se com o que considerou uma falta de respeito ao ambiente celestial. Após inúmeras peripécias, realizamos o encontro hipotético, cujos trechos principais transcrevo abaixo.
ooOOOoo

“A morte não exime ninguém dos seus deveres clubísticos”
J.T.: Nelson, antes de mais nada, em meu nome e no dos tricolores do Mundo (de todos os mundos): feliz aniversário! Este grupo de amigos tem um regulamento do qual consta um único artigo, escrito por você: “A morte não exime ninguém dos seus deveres clubísticos”. Seriam necessárias inúmeras entrevistas imaginárias para colher um amplo depoimento seu sobre todos os aspectos da vida brasileira. Então, resolvemos nos concentrar apenas no futebol ou, mais exatamente, no Fluminense…
N.R. (interrompendo): Se ainda usássemos chapéu, teríamos de tirá-lo toda vez que fôssemos falar do Fluminense. Não se dá um passo em Álvaro Chaves sem tropeçar numa glória.
Antonio Carlos (aparteando): Nelson, só um detalhe. Não lhe parece meio imaturo que passemos uma vida – e até mais de uma – a falar de futebol. Esta paixão desmesurada pelo Fluminense não é um pouco infantil?
N.R.: Amigos, o adulto não existe. O homem é um menino perene.

“Ser tricolor é um acontecimento de fundo metafísico”
J.T. (retomando): Antes de começar propriamente a entrevista, uma curiosidade. Você nasceu em 1912, junto com o Fla-Flu, quando o Fluminense tinha apenas dez anos de idade. A partir de quando se tornou tricolor?
N.R.: Sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas. Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode – e nem se deseja – fugir.
Angenor: Então, a vida toda, você só torceu pelo Fluminense?
N.R.: Sim, mas eu tenho dois Fluminenses. O próprio e a seleção brasileira – a pátria de chuteiras.
Stanislaw: Muitos de nós aprenderam a gostar de futebol, a compreendê-lo para além das questões puramente técnicas e táticas, lendo você…
N.R. (interrompendo): No futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Não há clássico, não há pelada sem uma orla de espanto. Por tudo que o futebol tem de misterioso e de patético, a mais sórdida pelada de subúrbio é de uma complexidade shakespeareana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.
Stanislaw (retomando): … então, seria um imenso prazer para todos os tricolores se ainda pudéssemos desfrutar de seus textos. Conhecer suas opiniões sobre os jogadores atuais. Por exemplo, o que você acha do Deco?
N.R.: A bola o segue como uma cadelinha amestrada. Ela tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Mas o futebol não vive de iluminações pessoais. Um time tem que ser, como tal, um conjunto harmônico e potente.

“A obra-prima tem de ser imperfeita”
Angenor: Até hoje, persiste uma velha polêmica entre pragmatismo e técnica; entre o resultado e a arte. Como você vê esta questão?
N.R.: Eis a grande verdade: a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita. Muitas vezes, o Fluminense é perfeito e não faz gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixa de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começam a jorrar aos borbotões.
Interrompemos a conversa para o Nelson trocar de lugar porque, onde estava, havia um vento encanado.
Antonio Carlos: Nelson, estamos bem colocados no atual Campeonato Brasileiro, mas ainda não somos líderes e há times, abaixo de nós, com grande potencial. Como você analisa esta situação?
N.R.: Amigos, eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E se me disserem que os fatos provam o contrário, eu vos respondo: pior para os fatos. Muita gente poderá objetar que estou exagerando. E daí? Só os imbecis não exageram. Ai de nós, se não fossem os exageros libertadores!
J.T.: Vamos falar um pouco da nossa torcida…
N.R. (interrompendo): Pode-se identificar um tricolor entre milhares, entre milhões. Ele se distingue dos demais por uma irradiação específica e deslumbradora.
J.T.: (retomando): … é verdade, mas volta e meia pesquisas um tanto obscuras – cuja metodologia nunca é bem explicada – pretendem que a nossa torcida não é numericamente relevante…
N.R. (interrompendo): Uma torcida não vale apenas pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão.
João Paulo: Sobretudo considerando a boa fase do time, muitos atribuem às inconveniências do Engenhão o pouco comparecimento da nossa torcida. O que você acha?
N.R.: Nas situações de rotina, um ‘pó-de-arroz’ pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas.
Antonio Carlos: Esta aversão ao Engenho de Dentro seria um sintoma do tão falado ‘elitismo tricolor’? O Fluminense é mesmo um clube de elite?
N.R.: Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, tem uma plebe que eu chamaria de épica. Nada é tão impressionante quanto o pé-rapado tricolor.

“O cinismo escorre como a água das paredes infiltradas”
J.T.: Nossa torcida tem evidentes motivos para se sentir insatisfeita com o estado atual da crônica esportiva. Você acha que seus ex-colegas entendem alguma coisa de futebol? E, principalmente, acha que são mesmo imparciais?
N.R.: Nenhum cronista esportivo sabe bater escanteio. O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz de imparcialidade. Só acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista.
Adionson: Então, a imparcialidade é só uma pose. Cada um age de acordo com a preferência clubística ou os interesses comerciais?
N.R.: O cinismo escorre por toda a parte, como a água das paredes infiltradas.
Adionson: Mas como é possível um único campo de trabalho reunir tanta gente desqualificada?
N.R.: Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina. A verdade é que, hoje, se o sujeito não se fingir de imbecil, não arranja emprego.

“A misericórdia também corrompe”
João Paulo: Coitados, então, deveríamos até ter piedade…
N.R.: Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
Adionson: Nelson, como você vê o momento atual da torcida rubro-negra?
N.R.: O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado.
J.T.: Muito menos conhecido do que o querido Gravatinha e do que o tenebroso Sobrenatural de Almeida, você também teve um personagem rubro-negro, não é?
N.R.: Trata-se do Paralelepípedo de Albuquerque, um flamenguista que certa vez me deu carona no seu fusca. É morador de Boca do Mato, onde está cercado de vizinhos paralelepípedos como ele, e tem uma simplicidade pétrea.

“Sossega a periquita!”"
Adionson: A presidente rubro-negra tem se destacado por certa presença escandalosa na mídia. Na chegada do Ronaldinho Gaúcho, quando contratamos o Thiago Neves…
N.R. (antecipando-se ao final da pergunta): Primeiro, a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil; depois, dava arrancos de cachorro atropelado… Sossega a periquita!
Risos.       Inaudível.
Aproveitando a interrupção, Nelson aceitou um cafezinho hipotético, acendeu um cigarro imaginário e completou:
N.R.: Desconfio muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro do erro e da obtusidade.
Adionson: E quanto ao protético que preside o Botafogo?
N.R.: Nunca um idiota da objetividade prospera no futebol.
Antonio Carlos: Você teve muitos amigos botafoguenses. O que acha do torcedor do Botafogo?
N.R.: Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por que? Porque há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. O patético parece ser a virtude mais pessoal e intransferível do botafoguense autêntico. Ele é um ser que sofre e, mais do que isso, gosta de sofrer e paga para sofrer.
Stanislaw: Nelson, em épocas recentes, nosso clube viveu fases muito difíceis, sobretudo nos anos 1990. Como você vê certas situações inéditas para o Fluminense, como a série C?
N.R.: O bom guerreiro conhece tudo, menos a capitulação. Aprende-se com uma vitória, um empate, uma derrota. Só a ociosidade não ensina coisa nenhuma.
J.T.: Como todos sabem, nosso clube tem problemas de infra-estrutura, além de uma dívida milionária. Para encerrar esta entrevista imaginária, gostaríamos de saber como o Profeta Tricolor antevê o futuro do Fluminense?
N.R.: Só os profetas enxergam o óbvio. Se quereis saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado. A história tricolor traduz a predestinação para a glória. O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade. Tudo pode passar, mas o Tricolor não passará, jamais. Quem o diz é o óbvio ululante!
Diante destas palavras inspiradoras, encerramos o encontro com um entusiasmado “Parabéns pra você”, seguido do Hino do Fluminense.
Saudações Tricolores.

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