Centenário de Nelson Rodrigues, o Profeta Tricolor.
Nelson Falcão Rodrigues nasceu em Recife (PE), em 23 de agosto de
1912. A crônica esportiva surgiu em sua vida profissional na segunda metade da
década de 1950, já consagrado como dramaturgo e escritor, quando começou a
redigir textos semanais para a revista Manchete Esportiva.
A partir de 1960,
iniciou sua participação na Grande Resenha Esportiva Facit, um programa
dominical da TV Rio. Em 1966, se mudou para a TV Globo e, no programa Noite de
Gala, apresentava o quadro “A Cabra Vadia”, no qual entrevistava personalidades
diversas, inclusive do universo do futebol. Nessa época, a TV Globo era a última
colocada em audiência, o cenário do terreno baldio era tão precário quanto o
próprio, a voz lenta e a dicção de Nelson não atendiam às necessidades da
televisão. Pois a repercussão foi imensa: “nas esquinas e nos botecos”,
citavam-se com familiaridade seus deliciosos personagens, bordões e frases de
efeito. No final de 1967, ele voltou a escrever no jornal O Globo e passou a
publicar as crônicas “À Sombra das Chuteiras Imortais”, que lhe ajudaram a
consolidar a obra futebolística.
Musa rodrigueana
Autorizados pelo ilustre
antecedente da entrevista imaginária - já conversamos aqui com nosso herói
fundador, Oscar Cox -, surgiu o desejo de também
entrevistarmos o Nelson, herói fundador da dimensão mítica do Fluminense. Tão
logo a decisão foi tomada, intensificaram-se os preparativos, mas esbarramos
em dificuldades inesperadas. O Adionson - além de se munir da rolley
flex emprestada pelo Antonio Carlos -, nos alertou para a necessidade de
“mantermos absoluta fidelidade à obra rodrigueana”, isto é, cismou que
deveríamos providenciar uma cabra vadia para participar da
entrevista. Mesmo em sua infinita paciência e santidade, o João Paulo
aborreceu-se com o que considerou uma falta de respeito ao ambiente celestial.
Após inúmeras peripécias, realizamos o encontro hipotético, cujos trechos
principais transcrevo abaixo.
ooOOOoo
“A morte não exime
ninguém dos seus deveres clubísticos”
J.T.: Nelson, antes de mais nada, em meu nome e
no dos tricolores do Mundo (de todos os mundos): feliz aniversário! Este grupo
de amigos tem um regulamento do qual consta um único artigo, escrito por você:
“A morte não exime ninguém dos seus deveres clubísticos”. Seriam necessárias
inúmeras entrevistas imaginárias para colher um amplo depoimento seu sobre
todos os aspectos da vida brasileira. Então, resolvemos nos concentrar apenas
no futebol ou, mais exatamente, no Fluminense…
N.R. (interrompendo): Se ainda usássemos chapéu, teríamos de tirá-lo toda vez que fôssemos falar do Fluminense. Não se dá um passo em Álvaro Chaves sem tropeçar numa glória.
N.R. (interrompendo): Se ainda usássemos chapéu, teríamos de tirá-lo toda vez que fôssemos falar do Fluminense. Não se dá um passo em Álvaro Chaves sem tropeçar numa glória.
Antonio
Carlos (aparteando):
Nelson, só um detalhe. Não lhe parece meio imaturo que passemos uma vida
– e até mais de uma – a falar de futebol. Esta paixão desmesurada
pelo Fluminense não é um pouco infantil?
N.R.: Amigos, o adulto não existe. O homem é um menino perene.
N.R.: Amigos, o adulto não existe. O homem é um menino perene.
“Ser tricolor é um
acontecimento de fundo metafísico”
J.T. (retomando): Antes de começar
propriamente a entrevista, uma curiosidade. Você nasceu em 1912, junto com o
Fla-Flu, quando o Fluminense tinha apenas dez anos de idade. A partir de quando
se tornou tricolor?
N.R.: Sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas. Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode – e nem se deseja – fugir.
N.R.: Sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas. Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode – e nem se deseja – fugir.
Angenor: Então, a vida toda, você só torceu pelo
Fluminense?
N.R.: Sim, mas eu tenho dois Fluminenses. O próprio e a seleção brasileira – a pátria de chuteiras.
N.R.: Sim, mas eu tenho dois Fluminenses. O próprio e a seleção brasileira – a pátria de chuteiras.
Stanislaw: Muitos de nós aprenderam a gostar de
futebol, a compreendê-lo para além das questões puramente técnicas e táticas,
lendo você…
N.R. (interrompendo): No futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Não há clássico, não há pelada sem uma orla de espanto. Por tudo que o futebol tem de misterioso e de patético, a mais sórdida pelada de subúrbio é de uma complexidade shakespeareana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.
N.R. (interrompendo): No futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Não há clássico, não há pelada sem uma orla de espanto. Por tudo que o futebol tem de misterioso e de patético, a mais sórdida pelada de subúrbio é de uma complexidade shakespeareana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural.
Stanislaw (retomando): … então, seria um imenso
prazer para todos os tricolores se ainda pudéssemos desfrutar de seus textos.
Conhecer suas opiniões sobre os jogadores atuais. Por exemplo, o que você
acha do Deco?
N.R.: A bola o segue como uma cadelinha amestrada. Ela tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Mas o futebol não vive de iluminações pessoais. Um time tem que ser, como tal, um conjunto harmônico e potente.
N.R.: A bola o segue como uma cadelinha amestrada. Ela tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Mas o futebol não vive de iluminações pessoais. Um time tem que ser, como tal, um conjunto harmônico e potente.
“A obra-prima tem de ser
imperfeita”
Angenor: Até hoje, persiste uma velha polêmica entre
pragmatismo e técnica; entre o resultado e a arte. Como você vê esta questão?
N.R.: Eis a grande verdade: a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita. Muitas vezes, o Fluminense é perfeito e não faz gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixa de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começam a jorrar aos borbotões.
N.R.: Eis a grande verdade: a obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita. Muitas vezes, o Fluminense é perfeito e não faz gol nenhum. A partir do momento em que o Fluminense deixa de ser tão elitista, tão Flaubert, os gols começam a jorrar aos borbotões.
Interrompemos
a conversa para o Nelson trocar de lugar porque, onde estava, havia um vento
encanado.
Antonio
Carlos: Nelson, estamos bem
colocados no atual Campeonato Brasileiro, mas ainda não somos líderes e há
times, abaixo de nós, com grande potencial. Como você analisa esta situação?
N.R.: Amigos, eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E se me disserem que os fatos provam o contrário, eu vos respondo: pior para os fatos. Muita gente poderá objetar que estou exagerando. E daí? Só os imbecis não exageram. Ai de nós, se não fossem os exageros libertadores!
N.R.: Amigos, eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E se me disserem que os fatos provam o contrário, eu vos respondo: pior para os fatos. Muita gente poderá objetar que estou exagerando. E daí? Só os imbecis não exageram. Ai de nós, se não fossem os exageros libertadores!
J.T.: Vamos falar um pouco da nossa torcida…
N.R. (interrompendo): Pode-se identificar um tricolor entre milhares, entre milhões. Ele se distingue dos demais por uma irradiação específica e deslumbradora.
N.R. (interrompendo): Pode-se identificar um tricolor entre milhares, entre milhões. Ele se distingue dos demais por uma irradiação específica e deslumbradora.
J.T.: (retomando): … é verdade, mas volta e meia pesquisas
um tanto obscuras – cuja metodologia nunca é bem explicada – pretendem que a
nossa torcida não é numericamente relevante…
N.R. (interrompendo): Uma torcida não vale apenas pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão.
N.R. (interrompendo): Uma torcida não vale apenas pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão.
João
Paulo: Sobretudo considerando
a boa fase do time, muitos atribuem às inconveniências do Engenhão o pouco
comparecimento da nossa torcida. O que você acha?
N.R.: Nas situações de rotina, um ‘pó-de-arroz’ pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas.
N.R.: Nas situações de rotina, um ‘pó-de-arroz’ pode ficar em casa abanando-se com a Revista do Rádio. Mas quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre: os tricolores vivos, doentes e mortos aparecem. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas e os mortos de suas tumbas.
Antonio
Carlos: Esta aversão ao
Engenho de Dentro seria um sintoma do tão falado ‘elitismo tricolor’? O
Fluminense é mesmo um clube de elite?
N.R.: Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, tem uma plebe que eu chamaria de épica. Nada é tão impressionante quanto o pé-rapado tricolor.
N.R.: Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, tem uma plebe que eu chamaria de épica. Nada é tão impressionante quanto o pé-rapado tricolor.
“O cinismo escorre como
a água das paredes infiltradas”
J.T.: Nossa torcida tem evidentes motivos para se
sentir insatisfeita com o estado atual da crônica esportiva. Você acha que seus
ex-colegas entendem alguma coisa de futebol? E, principalmente, acha que são
mesmo imparciais?
N.R.: Nenhum cronista esportivo sabe bater escanteio. O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz de imparcialidade. Só acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista.
N.R.: Nenhum cronista esportivo sabe bater escanteio. O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz de imparcialidade. Só acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista.
Adionson: Então, a imparcialidade é só uma pose. Cada
um age de acordo com a preferência clubística ou os interesses comerciais?
N.R.: O cinismo escorre por toda a parte, como a água das paredes infiltradas.
N.R.: O cinismo escorre por toda a parte, como a água das paredes infiltradas.
Adionson: Mas como é possível um único campo de
trabalho reunir tanta gente desqualificada?
N.R.: Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina. A verdade é que, hoje, se o sujeito não se fingir de imbecil, não arranja emprego.
N.R.: Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina. A verdade é que, hoje, se o sujeito não se fingir de imbecil, não arranja emprego.
“A misericórdia também
corrompe”
João
Paulo: Coitados, então,
deveríamos até ter piedade…
N.R.: Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
N.R.: Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.
Adionson: Nelson, como você vê o momento atual da
torcida rubro-negra?
N.R.: O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado.
N.R.: O torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado.
J.T.: Muito menos conhecido do que o querido
Gravatinha e do que o tenebroso Sobrenatural de Almeida, você também teve um
personagem rubro-negro, não é?
N.R.: Trata-se do Paralelepípedo de Albuquerque, um flamenguista que certa vez me deu carona no seu fusca. É morador de Boca do Mato, onde está cercado de vizinhos paralelepípedos como ele, e tem uma simplicidade pétrea.
N.R.: Trata-se do Paralelepípedo de Albuquerque, um flamenguista que certa vez me deu carona no seu fusca. É morador de Boca do Mato, onde está cercado de vizinhos paralelepípedos como ele, e tem uma simplicidade pétrea.
“Sossega a
periquita!”"
Adionson: A presidente rubro-negra tem se destacado
por certa presença escandalosa na mídia. Na chegada do Ronaldinho Gaúcho,
quando contratamos o Thiago Neves…
N.R. (antecipando-se ao final da pergunta): Primeiro, a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil; depois, dava arrancos de cachorro atropelado… Sossega a periquita!
N.R. (antecipando-se ao final da pergunta): Primeiro, a mulher dava gargalhadas de bruxa de disco infantil; depois, dava arrancos de cachorro atropelado… Sossega a periquita!
Risos.
Inaudível.
Aproveitando
a interrupção, Nelson aceitou um cafezinho hipotético,
acendeu um cigarro imaginário e completou:
N.R.: Desconfio
muito dos veementes. Via de regra, o sujeito que esbraveja está a um milímetro
do erro e da obtusidade.
Adionson: E quanto ao protético que preside o
Botafogo?
N.R.: Nunca um idiota da objetividade prospera no futebol.
N.R.: Nunca um idiota da objetividade prospera no futebol.
Antonio
Carlos: Você teve muitos
amigos botafoguenses. O que acha do torcedor do Botafogo?
N.R.: Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por que? Porque há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. O patético parece ser a virtude mais pessoal e intransferível do botafoguense autêntico. Ele é um ser que sofre e, mais do que isso, gosta de sofrer e paga para sofrer.
N.R.: Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, dêem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por que? Porque há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. O patético parece ser a virtude mais pessoal e intransferível do botafoguense autêntico. Ele é um ser que sofre e, mais do que isso, gosta de sofrer e paga para sofrer.
Stanislaw: Nelson, em épocas recentes, nosso clube
viveu fases muito difíceis, sobretudo nos anos 1990. Como você vê certas
situações inéditas para o Fluminense, como a série C?
N.R.: O bom guerreiro conhece tudo, menos a capitulação. Aprende-se com uma vitória, um empate, uma derrota. Só a ociosidade não ensina coisa nenhuma.
N.R.: O bom guerreiro conhece tudo, menos a capitulação. Aprende-se com uma vitória, um empate, uma derrota. Só a ociosidade não ensina coisa nenhuma.
J.T.: Como todos sabem, nosso clube tem problemas
de infra-estrutura, além de uma dívida milionária. Para encerrar esta
entrevista imaginária, gostaríamos de saber como o Profeta Tricolor antevê
o futuro do Fluminense?
N.R.: Só os profetas enxergam o óbvio. Se quereis saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado. A história tricolor traduz a predestinação para a glória. O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade. Tudo pode passar, mas o Tricolor não passará, jamais. Quem o diz é o óbvio ululante!
N.R.: Só os profetas enxergam o óbvio. Se quereis saber o futuro do Fluminense, olhai para o seu passado. A história tricolor traduz a predestinação para a glória. O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade. Tudo pode passar, mas o Tricolor não passará, jamais. Quem o diz é o óbvio ululante!
Diante destas palavras
inspiradoras, encerramos o encontro com um entusiasmado “Parabéns pra você”,
seguido do Hino do Fluminense.
Saudações Tricolores.
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