Cultura versus proteção animal - Justiça gaúcha proíbe carreira de "boi cangado"

terça-feira, 22 de maio de 2012

Tradição cruel

Justiça gaúcha proíbe carreira de "boi cangado"

A carreira de ‘‘boi cangado’’ é uma prática cruel que traz sofrimento aos animais. O ato de espetar o guizo no boi, fazendo-o sangrar, para que avance na competição, é ato covarde, incompatível com a genuína tradição gaúcha no trato com os animais, além de ilegal. Com este entendimento, o juiz Gustavo Borsa Antonello, da Vara Judicial de General Câmara, manteve liminar que proíbe esta tradicional competição na sua comarca e na de Vale Verde. A antecipação de tutela foi pedida pelo Ministério Público estadual.
O Juiz destacou que ‘‘o tom lúdico dos escritos e das pesquisas encontra intransponível resistência e oposição na ganância dos apostadores. Aquilo que servia de mero lazer, diversão ou mesmo mote a evitar que os rurícolas se afastassem de seu habitat, servindo de meio de preservação da cultura e valores gauchescos mais tradicionais, agora não mais serve a esse fim, mormente quando um dos animais que servem ao manejo da atividade agropastoril é objeto de crueldade e maus tratos’’.
A determinação judicial impede que as prefeituras de ambos os municípios expeçam alvarás para promover as competições. As associações de gado de força, entre outras, também devem se abster de promovê-las. Em caso de descumprimento, a municipalidade pagará multa de R$ 5 mil; as duas associações de gado de força, R$ 2,5 mil; e cada um dos participantes flagrados nestes eventos, R$ 500. Além da multa, todos os infratores estarão sujeitos a responder por crime de desobediência. A sentença foi dada dia 3 de maio. Cabe recurso.

O caso
O Ministério Público ajuizou Ação Cível Pública (ACP), com pedido de liminar, contra a Associação Camarense de Criadores de Gado de Força e outros, incluindo os entes municipais, para que se abstenham de promover e/ou autorizar a realização das tradicionais ‘‘carreiras de boi cangado’’ nos municípios de General Câmara e Vale Verde.
As corridas consistem na colocação de uma canga (peça de madeira que se encaixa no cangote dos animais e presa sob o pescoço por uma tira de couro trançado sobre dois animais, que é presa ao chão). Os animais são, então, espetados com uma lança com pregos na ponta, até ficarem bravos e violentos, partindo para a disputa, que só tem fim quando o mais fraco cai ao solo, sem forças. A inicial foi instruída com base em Inquérito Civil aberto pela Promotoria de Justiça de General Câmara.
Durante a audiência de instrução do processo, foi apresentada proposta de conciliação, ideia rechaçada pelo parquet estadual, face às robustas provas de maus tratos trazidas aos autos. Na ocasião, os prefeitos de General Câmara e de Vale Verde informaram que não mais expediram alvarás para as “carreiras de boi cangado”.
O promotor de Justiça Luciano Alessandro Winck Gallicchio, que assinou a inicial, afirmou que esta ‘‘suposta tradição cultural açoriana’’ está em descompasso com a Constituição Federal e fere o artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais – n.o 9.605/98. E mais: a prática ‘‘submete os animais a atos de abuso e maus tratos, impingindo-lhes intenso martírio físico e mental, realizando, ainda, de forma concomitante, a exploração econômica travestida com a roupagem de tradição, mediante realização de vultosas apostas’’.
O sofrimento nas carreiras é apenas uma parte da rotina dos bovinos selecionados para as competições. Estes são ainda submetidos a treinamentos, atividades que provocam profundo stress, sofrimento e tortura.

O entendimento do juiz
‘‘O certo é que o tom lúdico dos escritos e das pesquisas encontra intransponível resistência e oposição na ganância dos apostadores. Aquilo que servia de mero lazer, diversão ou mesmo mote a evitar que os rurícolas se afastassem de seu habitat, servindo de meio de preservação da cultura e valores gauchescos mais tradicionais, agora não mais serve a esse fim, mormente quando um dos animais que servem ao manejo da atividade agropastoril é objeto de crueldade e maus tratos’’, destacou.

Cultura versus proteção animal
Registrou a liminar: ‘‘(...) Em competições de boxe, jiu-jitsu, judô ou qualquer outro tipo de luta entre seres humanos (que estão ali por vontade própria!!!), os competidores não são estimulados por meio de cutucões com objetos pontiagudos. Por que, então, seria lícito aos humanos (racionais), por pura diversão, fazê-lo com os animais (irracionais)?"

O juiz Gustavo Borsa Antonello, ao proferir a sentença que manteve a liminar, explicou que o processo põe em aparente conflito dois princípios consagrados no texto constitucional: a proteção ao meio ambiente e o incentivo à cultura. ‘‘Não se nega, então, que as carreiras de boi integram a cultura popular local e, como tal, mereceriam do poder público incentivo. Por outro lado, a prova produzida nos autos também revela que as ‘carreiras de boi cangado’ encontram,
pelo menos, dois óbices à sua manutenção, nos moldes até então praticadas’’, contrapôs ele, citando os maus tratos e as apostas – que estimulam os eventos. Nesta linha, ambas as condutas são vedadas no ordenamento jurídico, classificadas como crime e contravenção penal, respectivamente.
O juiz disse que a existência de uma dignidade da vida não-humana também é sustentada pela melhor doutrina ambientalista. A respeito do tema, citou o jurista e professor gaúcho Tiago Fensterseifer: “A Constituição Federal brasileira, no seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, enuncia de forma expressa a vedação de práticas que ‘provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade’, o que sinaliza o reconhecimento, por parte do constituinte, do valor inerente a outras formas de vida não-humanas, protegendo-as, inclusive, contra a ação humana’’.

A sentença foi dada dia 3 de maio e dela cabe recurso.
Fonte: Abrampa

Clique aqui para ler a ACP e aqui para ler a sentença.

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